quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

AS MUDANÇAS LIGADAS AO TRABALHO ANALÍTICO

AS MUDANÇAS LIGADAS AO TRABALHO ANALÍTICO


Trecho reproduzido do Livro: A Prática Analítica de Thierry Bokanowski
Imago Editora, 2002

O trabalho analítico dá oportunidade ao indivíduo de alcançar um certo número de mudanças que lhe permitem atingir novas modalidades de funcionamento psíquico. Permitindo que ele tenha acesso à sua própria posição subjetiva, tais mudanças dirão essencialmente respeito à modificação de suas relações consigo próprio. Esse movimento de subjetivação, que o ajudará a tomar consciência e a ultrapassar determinados automatismos de repetição em ação desde a sua infância, modificará sensivelmente o destino de seus afetos e de suas representações, ligados aos desejos que dizem respeito simultaneamente aos seus objetos primários e aos de sua história infantil. Isso lhe permitirá flexibilizar suas relações com seu superego, seu ideal de ego, bem como com seu ego ideal, em termos das exigências destes.

Isso o levará a aceitar a diferença entre os sexos e gerações, isto é, a reconhecer os limites do sexo que possui, e a existência do sexo que ele não possui. Também será conduzido a aceitar a irreversibilidade do tempo que passa, a realidade da morte, a ferida narcísica ligada à existência do inconsciente, assim como a humilhação que o aspecto indomável do id provoca... Isso significa aceitar a castração em todas as suas formas, inclusive as que se expressam ou se traduzem pela separação, e, assim, adquirir maior liberdade em sua vida pulsional, e mesmo erótica, maior capacidade de amar, e maiores aberturas para a sublimação. Será preciso para tanto suportar seus movimentos depressivos que o ajudarão a fazer lutos passados e futuros.

Assim, o que é esperado do trabalho analítico é que um dia ele chegue ao ponto em que a função analisante do analista possa ser introjetada pelo indivíduo em análise, e que o término da análise seja marcado por uma capacidade de poder ter certa distância com relação a sim próprio, em outras palavras, poder perceber suficientemente seus movimentos inconscientes. Como escreveu René Diatkine, “tomar distância, adquirir insight, liberar suficiente humor em relação a si próprio e ternura com respeito ao próximo para permitir uma existência mais agradável para si e para os outros”


Diatkine, R. (1988), Destins du transfer, Revue française de Psychnalyse, 52, 4/1988, pp.803-813

terça-feira, 28 de julho de 2009

Psicanálise e Educação

PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO

Quem tiver um por que viver
suporta quase sempre o como viver.

Dr. Pedro H. Angueth de Araujo

Se a sociedade moderna perdeu os seus paradigmas, os valores básicos e uma forma constante de viver e transmitir conhecimentos aos indivíduos, se ela fragmentou o trabalho, desestruturou o conhecimento, fazendo com que as famílias também se fragmentassem, abriu o mercado para a mulher e os filhos em regra geral ficaram à mercê da babá e da televisão, como educar uma criança no mundo moderno? Como construir uma subjetividade forte e não alienada, quando na verdade o ser humano está subjugado a forças não controladas e coordenadas objetivamente para um fim, estruturado intencionalmente?
Sabe-se que, para o estado, o indivíduo deve ser educado para o trabalho. As relações entre as pessoas pouco contam, apenas a sua adaptação, a produtividade, a competitividade e o olhar do mundo para o consumo de todas as espécies de bens. Como fazê-lo? Como trabalhar filosófica, pedagógica e interiormente, esse ser humano que não é um ser material, que não é um ser puramente jogado no mundo, sem outras considerações subjetivas. Como fazê-lo?
Sabendo que a formação pura e simples de nossos professores têem falhado na ajuda para a construção de identidades e subjetividades fortes e saudáveis, capazes de enfrentar o mundo e vencê-lo com uma boa dose de felicidade, é normal que lancemos os nossos olhares para outros lados à procura de ajuda.
É pena que essa ajuda não pode mais vir irrestritamente da família, uma vez que os pais encontram-se ocupados em satisfazer a sanha do estado e do sistema econômico. Por muito que tentem, seu tempo sempre será exíguo para essa tarefa.
Aí eu pergunto: pode a Psicanálise ajudar?
O discurso pedagógico e o discurso terapêutico estão hoje intimamente relacionados. As práticas pedagógicas, sobretudo quando não são estritamente de ensino, isto é, de transmissão de conhecimentos ou de "conteúdos" em sentido restrito, mostram importantes similitudes estruturais com as práticas terapêuticas. A educação se estende e se pratica cada vez mais como terapia (pela relativa ausência dos agentes primários: os pais), e a terapia se estende e se pratica cada vez mais como educação e re-educação (pela relativa ausência das práticas pedagógicas escolares e da formação de valores sociais que se atribuem às demais instituições sociais).
Segundo Cifali e Imbert (1): "De todas as aplicações da psicanálise, nenhuma provocou tanto interesse, despertou tantas esperanças e, em consequência, atraiu tantos colaboradores competentes quanto à aplicação à teoria e à prática da educação infantil... Vemo-nos aqui no campo da aplicação da psicanálise . Se a criança se tornou o principal objeto da pesquisa psicanalítica, a criança a ser educada , a criança em fase escolar, será objeto de uma aplicação desses "esforços psicanalíticos", realizados, anteriormente, no campo psicanalítico."
"Em 1913, o texto: "Interesse da Psicanálise", único a desenvolver uma síntese das aplicações não-médicas da psicanálise, se concluiu com "O interesse pedagógico". Freud acentua que a psicanálise trouxe à luz os desejos, a formação de pensamentos, os processos de desenvolvimento da infância e acima de tudo, a importância "inestimável" da sexualidade nas manifestações corporais e psíquicas."
"Em 1932, em "Nova sequência das lições introdutórias da psicanálise" .... Freud acrescenta: Há apenas um tema que não posso deixar facilmente de lado. Não que a compreensão que dele tenho ou a minha contribuição sejam particularmente grandes. Pelo contrário, foi com dificuldade que até agora me ocupei dele. Mas ele se mostra particularmente importante e pleno de esperanças para o futuro, o que talvez seja a coisa mais importante entre os componentes da análise. Desejo falar da aplicação da psicanálise à pedagogia, à educação da próxima geração."(Grifo nosso).
Analisando bem, as práticas pedagógicas e terapêuticas vão cada vez se parecendo mais. As teorias sobre a natureza humana definem sua própria sombra: definem patologias e forma de imaturidade no mesmo movimento no qual a natureza humana, o que é o homem, funciona como um critério do que deve ser a saúde ou a maturidade. A partir daí, as práticas pedagógicas e/ou terapêuticas podem tornar-se como lugares de mediação nas quais a pessoa simplesmente encontra os recursos para o pleno desenvolvimento de sua autoconsciência e sua autodeterminação, ou para a restauração de uma relação distorcida consigo mesma. As práticas pedagógicas e/ou terapêuticas seriam assim, espaços institucionalizados onde a verdadeira natureza da pessoa humana e autoconsciente e dona de si mesma pode desenvolver-se e/ou recuperar-se.
Daí pensarmos que a Psicanálise pode ser o veículo terapêutico mais adequado como elemento de co-formação pedagógica dos professores que, podendo justapor ambas as teorias, mediá-las no trato profissional de formação das mentalidades das gerações atuais e futuras.
É necessário atentar-se para o fato de que cada vez mais os educadores - pelo menos na fase inicial da escolarização - vêm tendo que, muitas vezes substituir os pais na educação básica das crianças. Se avançando, levarmos em conta que tanto para a educação como para a psicanálise, os primeiros anos de vida serão vitais na formação da personalidade futura, a mediação pedagógica e/ou terapêutica tem de ser executada ainda com maior consciência.
Sabedores ambos - pedagogia e psicanálise - , de que o Estado e o Sistema Econômico, têm desvirtuado intencionalmente os fins da escolarização para efeitos de escravização do homem ao mercado de trabalho, a mediação deverá encarar desafios cada vez mais sofisticados para conseguir neutralizar essas intenções, para possibilitar o aparecimento de subjetividades mais autônomas, equilibradas e felizes.
Corroborando o se disse acima, lembrando Michel Foucault (2):
"a problemática do governo aparece já nas primeiras análises como historicamente desdobrada tanto no campo político (em relação à "arte de governar" e à "polícia"), quanto no campo moral (em relação ao "governo de si mesmo"), no campo pedagógico (em relação ao "governo das crianças"), no campo pastoral (em relação "ao governo da alma, da consciência e da vida") e inclusive no campo econômico ("governo da casa" e da "riqueza do Estado")."

Para que se possa dotar o indivíduo com mecanismos adequados a submeterem-se no mínimo necessário às influências externas a ele nefastas, venha de que campo for, necessitamos cada vez mais da mediação pedagógica e/ou psicanalítica.
Ainda aproveitando as palavras de Foucault (3):

"Estudar a constituição do sujeito como objeto para si mesmo: a formação de procedimentos pelos quais o sujeito é induzido a observar-se a si mesmo, analisar-se, decifrar-se, reconhecer-se como um domínio de saber possível. Trata-se em suma, da história da "subjetividade", se entendemos essa palavra como o modo no qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade no qual está em relação consigo mesmo".

Sabemos que o homem é um ser triplicemente manifestado em interior ou id (inconsciente), ego (consciente) e exterior (superego) e que o ego deve ser permanentemente o agente de equilíbrio, para que se possa ter uma vida sadia. Caberá, portanto, è educação e à psicanálise, mantê-lo em seu desenvolvimento normal.
Daí justificar-se o empenho em que cada vez mais os educadores se interessem pela psicanálise. A missão de educar não implica necessariamente transmitir conteúdo e manter o aluno disciplinarmente na sala de aula e outras atividades. Educar é mais que isso, é preparar para a vida. Para tanto, são necessários outros instrumentos que não os usualmente disponíveis.
O mundo tornou-se tão tecnologicamente sofisticado que hoje é muito mais fácil a formação de um "robô" humanizado ou um homem "robotizado", do que uma subjetividade livre, equilibrada e feliz. No mundo exterior competem: o dinheiro, a fama, a mídia, a sexualidade, o poder, a corrupção e os desejos inconfessáveis. Tudo isso podendo levar ao desequilíbrio da tríade - id-ego-superego - com todos as nefastas consequências que a Psicanálise conhece.
Porque então, não se aproveitar desde cedo, a única chance que temos de educar para o equilíbrio? Só assim teremos no futuro uma sociedade mais sadia, solidária e humanamente vivenciável. Os únicos que ganham com o desequilíbrio humano são o Estado e o Sistema Econômico, embora não saibam que podem ganhar muito mais quando a humanidade for autoconsciente.
Finalizando, gostaria de enfatizar que, a permuta entre os conhecimentos da Educação e da Psicanálise, só poderão gerar frutos saborosos para o homem em si e para a sociedade. O dia em que os educadores e os psicanalistas entenderem isso e iniciarem um diálogo comum, talvez nesse dia estará começando uma verdadeira revolução no planeta Terra.

Notas:
01. CIFALI, Mireille e IMBERT, Francis. Freud e a Psicanálise. S. Paulo, Edições Loyola, 1999.
02. LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu. In: Tomaz Tadeu da Silva. O Sujeito da Educação. Petrópolis, Vozes, 1994.
03. FOUCAULT, Michel. Dicionaire de Philosophes. Paris, PUF, 1984.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Interdisciplinaridade

Que se entende por interdisciplinaridade? Como se dá nossa relação com o mundo social, natural e cultural? Esta relação se dá fragmentada, de tal modo que cada fenômeno observado ou vivido é entendido ou percebido como fato isolado? Ou essa relação se dá de forma global, entendendo que cada fenômeno observado ou vivido está inserido numa rede de relações que lhe dá sentido e significado. Enfim como se dá o conhecimento? E como se realiza um fazer docente pautado no conceito de interdisciplinaridade?
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – Parecer CEB/CNB no. 15/98, instituídas pela Resolução nº. 4/98, entre outras disposições, determinam que os currículos se organizem em áreas – “a base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em áreas de conhecimento” – estruturadas pelos princípios pedagógicos da interdisciplinaridade, da contextualização, da identidade, da diversidade e autonomia, redefinindo, de modo radical, a forma como têm sido realizadas a seleção e organização de conteúdos e a definição de metodologias nas escolas em nosso país.
Foram organizadas e propostas três áreas curriculares: Linguagens e Códigos e suas tecnologias, Ciências da Natureza e Matemática e suas tecnologias e Ciências Humanas, Filosofia e suas tecnologias.
Entre os princípios pedagógicos que estruturam as áreas de conhecimento destaca-se como eixo articulador, a interdisplinaridade. Para observância da interdisciplinaridade é preciso entender que as disciplinas escolares resultam de recortes e seleções arbitrários, historicamente constituídos, expressões de interesses e relações de poder que ressaltam, ocultam ou negam saberes.
E mais: alguns campos de saber são privilegiados em sua representação como disciplinas escolares e outros não. Historicamente são valorizados determinados campos do conhecimento escolar, sob o argumento de que se mostram úteis para resolver problemas de dia a dia. A forma de inserção e abordagem das disciplinas num currículo escolar é em si mesma indicadora de uma opção pedagógica de e propiciar ao aluno a construção de um conhecimento fragmentário ou orgânico e significativo, quanto à compreensão dos fenômenos naturais, sociais e culturais.
O desenvolvimento das ciências e os avanços da tecnologia, no século XX, constataram que o sujeito pesquisador interfere no objeto pesquisado, que não há neutralidade no conhecimento, que a consciência da realidade se constrói num processo de interpenetração dos diferentes campos do saber.
Ao sistematizar o ensino do conhecimento, os currículos escolares ainda se estruturam fragmentadamente e muitas vezes seus conteúdos são de pouca relevância para os alunos, que não vêem neles um sentido.
É importante deixar claro que a prática docente, ao adotar a interdisplinaridade como metodologia no desenvolvimento do currículo escolar, não significa o abandono das disciplinas nem supõe para o professor uma “pluri-especialização” bem difícil de se imaginar, com o risco do sincretismo e da superficialidade. Para maior consciência da realidade, para que os fenômenos complexos sejam observados, vistos, entendidos e descritos torna-se cada vez mais importante a confrontação de olhares plurais na observação da situação de aprendizagem. Daí a necessidade de um trabalho de equipe realmente pluridisciplinar.
A contextualização, outro princípio pedagógico que rege a articulação das disciplinas escolares, não deve ser entendida como uma proposta de esvaziamento, como uma proposta redutora do processo ensino aprendizagem, circunscrevendo-o ao que está no redor imediato do aluno, suas experiências e vivências. Um trabalho contextualizado parte do saber dos alunos para desenvolver competências que venham a ampliar este saber inicial. Um saber que situe os alunos num campo mais amplo de conhecimentos, de modo que possam efetivamente se integrar na sociedade, atuando, interagindo e interferindo sobre ela.Os princípios da identidade, diversidade e autonomia redefinem a relação a ser mantida entre os sistemas de ensino e as escolas. Essa proposta não deve ser entendida como ausência ou omissão do Estado. Ao contrário, a identidade e a autonomia das escolas são exercidas no contexto constituído por diretrizes gerais de ação e assessoramento à implantação das políticas educacionais, o que exige dos sistemas educacionais (federal, estaduais ou municipais), para que a autonomia não se configure como descaso ou abandono, a definição de diretrizes de uma política educacional que reflita as necessidades e demandas do sistema, em consonância com as Diretrizes Nacionais e a estruturação de mecanismos de supervisão / assessoramento, acompanhamento e avaliação dos resultados do desempenho das escolas.
É importante ressaltar que essa autonomia implica em planejamento conjunto e integrado da escola, expressão de um compromisso tácito entre os agentes envolvidos sobre objetivos compartilhados, considerando a especificidade, as necessidades e as demandas de seu corpo docente e discente, criando expressão própria e local ao disposto na base nacional comum.
Esses pressupostos justificam e esclarecem a opção pela organização do currículo em áreas que congregam disciplinas com objetos comuns de estudo, capazes, portanto de estabelecer um diálogo produtivo do ponto de vista do trabalho pedagógico, e que podem estabelecer também um diálogo entre si enquanto áreas.
Ao ser mantida uma disciplinarização, existente ainda nos currículos escolares, a organização da escola se mantém inflexível, o que dificulta uma prática docente mais articulada e significativa para os alunos. As aulas se sucedem de acordo com uma “grade” curricular em tempos sucessivos, tratando de temas dissociados um dos outros.
Várias iniciativas de articulação dos conhecimentos escolares têm sido realizadas. Um dos modelos de integração disciplinar é a multidisciplinaridade: o mesmo tema é tratado por diferentes disciplinas, em um planejamento integrado. Outro método de trabalho didático é aquele em que o currículo se constitui ou se desenvolve em uma série de projetos que problematizam temas da sociedade, que tenham interesse para o grupo.
Uma articulação possível é a de diversos campos de conhecimento, a partir de eixos conceituais. Uma metodologia importante de trabalho didático é a que se dá através de conceitos, como tempo, espaço, dinâmica das transformações sociais, a consciência da complexidade humana e da ética nas relações, a importância da preservação ambiental, o conhecimento básico das condições para o exercício pleno da cidadania. A articulação do currículo a partir de conceitos-chave, sem dúvida, dá uma organicidade ao planejamento curricular.
É necessário um planejamento conjunto que possibilite a eleição de um eixo integrador, que pode ser um objeto de conhecimento, um projeto de intervenção e, principalmente, o desenvolvimento de uma compreensão da realidade sob a ótica da globalidade e da complexidade, uma perspectiva holística da realidade.
* * *
É um tema complexo, a interdisciplinaridade. Talvez, mais afeito a professores e professoras em sua tarefa docente. Cremos que sim, mas não exclusivamente. Interdisciplinaridade se realiza como uma forma de ver e sentir o mundo. De estar no mundo. Se formos capazes de perceber, de entender as múltiplas implicações que se realizam, ao analisar um acontecimento, um aspecto da natureza, isto é, o fenômeno dimensão social, natural ou cultural... . Somos capazes de ver e entender o mundo de forma holística, em sua rede infinita de relações, em sua complexidade.

COMPLEXIDADE

COMPLEXIDADE E PENSAMENTO COMPLEXO(Texto Introdutório)
Humberto Mariotti
Nenhum homem é uma ilha; qualquer homem é uma parte do todo. A morte de qualquer homem me diminui, porque faço parte da humanidade; assim, nunca procures saber por quem dobram os sinos: eles dobram por ti.— JOHN DONNE (1572-1631)
No trabalho com grupos, organizações e instituições, tenho utilizado o texto abaixo como instrumento de reflexão e mobilização. Trata-se de um resumo didático.
O que é complexidade
1. A complexidade não é um conceito teórico e sim um fato da vida. Corresponde à multiplicidade, ao entrelaçamento e à contínua interação da infinidade de sistemas e fenômenos que compõem o mundo natural. Os sistemas complexos estão dentro de nós e a recíproca é verdadeira. É preciso, pois, tanto quanto possível entendê-los para melhor conviver com eles.
2. Não importa o quanto tentemos, não conseguimos reduzir essa multidimensionalidade a explicações simplistas, regras rígidas, fórmulas simplificadoras ou esquemas fechados de idéias. A complexidade só pode ser entendida por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível — o pensamento complexo. Este configura uma nova visão de mundo, que aceita e procura compreender as mudanças constantes do real e não pretende negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas.
3. Lembremos uma frase de Jean Piaget: "Os fenômenos humanos são biológicos em suas raízes, sociais em seus fins e mentais em seus meios". A experiência humana é um todo bio-psico-social, que não pode ser dividido em partes nem reduzido a nenhuma delas. Primeiro, percebemos o mundo. Em seguida, as percepções geram sentimentos e emoções. Na seqüência, estes são elaborados em forma de pensamentos, que vão determinar o nosso comportamento no cotidiano.
4. O modo como nos tornamos propensos (pela educação e pela cultura) a pensar é que vai determinar as práticas no dia-a-dia, tanto no plano individual quanto no social. Do ponto de vista bio-psico-social, o principal problema para a implantação do desenvolvimento sustentado (e portanto o desenvolvimento da cidadania) é a predominância, em nossa cultura, do modelo mental linear (ou lógica aristotélica, ou lógica do terceiro excluído).
5. Por esse modelo, A só pode ser igual a A. Tudo o que não se ajustar a essa dinâmica fica excluído. É a lógica do "ou/ou", que deixa de lado o "e/e", isto é, exclui a complementaridade e a diversidade. Desde os Gregos que esse modelo mental vem servindo de base para os nossos sistemas educacionais.
6. Essa lógica levou à idéia de que se B vem depois de A com alguma freqüência, B é sempre o efeito e A é sempre a causa (causalidade simples). Na prática, essa posição gerou a crença (errônea) de que entre causas e efeitos existe sempre uma contigüidade ou uma proximidade muito estreita. Essa concepção é responsável pelo imediatismo, que dificulta e muitas vezes impede a compreensão de fenômenos complexos, como os de natureza bio-psico-social.
7. O modelo mental cartesiano é indispensável para resolver os problemas humanos mecânicos (abordáveis pelas ciências ditas exatas e pela tecnologia). Mas é insuficiente para resolver problemas humanos em que participam emoções e sentimentos (a dimensão psico-social). Um exemplo: o raciocínio linear aumenta a produtividade industrial por meio da automação, mas não consegue resolver o problema do desemprego e da exclusão social por ela gerados, porque se trata de questões não-lineares. O mundo financeiro é apenas mecânico, mas o universo da economia é mecânico e humano.
8. Desde os primeiros dias de escola (e de vida, dentro da cultura), nosso cérebro começa a ser profundamente formatado pelo modelo linear. Para ele, o predomínio de um determinado pensamento, com exclusão de quaisquer outros é "lógico" e perfeitamente "natural". Essa é a base das ideologias em geral e do autoritarismo em particular. Desse modo, fenômenos como a exclusão social são também vistos como "lógicos", "naturais" e "inevitáveis".
9. O modelo mental linear-cartesiano forma a base do empirismo, que diz que existe uma única realidade, que deve ser percebida da mesma forma por todos os homens. Hoje, porém, sabe-se que não existe percepção totalmente objetiva (ver abaixo, no item 11, a posição de Humberto Maturana).
10. Por isso, nos últimos anos esse modelo de pensamento tem sido questionado de muitas formas, inclusive pelo pensamento complexo. Este permite entender os processos autopoiéticos (autoprodutores, auto-sustentados, autogestionários), dos quais as sociedade humanas constituem um exemplo.
11. O pensamento complexo baseia-se na obra de vários autores, cujos trabalhos vêm tendo ampla aplicação em biologia, sociologia, antropologia social e desenvolvimento sustentado. Uma de suas principais linhas é a biologia da cognição, de Maturana, que sustenta que a realidade é percebida por um dado indivíduo segundo a estrutura (a configuração bio-psico-social) de seu organismo num dado momento. Essa estrutura muda constantemente de acordo com a interação do organismo com o meio.
12. A diversidade de visões não impede (pelo contrário, pede) que cheguemos a acordos (consensos sociais) sobre o mundo em que vivemos. Esses consensos é que vão determinar as práticas sociais. Para que possamos chegar a consensos que levem em conta o respeito à diversidade de pontos de vista é necessário observar alguns parâmetros básicos:
· O que chamamos de racional é o resultado de nossas percepções. No início, elas surgem como sentimentos e emoções. Só depois é que se transformam em pensamentos, que geram discursos, que por fim são formalizados como conceitos.
· O racional vem do emocional, não o contrário. Isso não quer dizer que devamos deixar de ser racionais. Significa apenas que precisamos aprender a harmonizar razão e emoção, pensamento mecânico e pensamento sistêmico. Essa é a proposta básica do modelo complexo.
· Uma cultura é uma rede de conversações que define um modo de viver. Toda cultura é definida pelos discursos que nela predominam. Estes se originam nas conversações, que começam entre indivíduos, estendem-se às comunidades e por fim a todo o âmbito cultural.
· Os consensos sociais (que determinam, por exemplo, o que é permitido e o que não é, o que é real e o que é imaginário numa determinada cultura) resultam desses discursos, que por sua vez são oriundos das redes de conversação.
· Cresce-se numa cultura vivendo nela como um indivíduo participante da rede de conversações que a define. Crescer numa cultura significa, então, adquirir e desenvolver a cidadania.
· Uma cultura que não desenvolve a cidadania de seus membros não cresce, permanece subdesenvolvida. Logo, não pode sequer começar a pensar em desenvolvimento sustentado.
· Como vimos há pouco, todo sistema racional começa no emocional: o que pensamos vem do que sentimos. É por isso que nenhum argumento racional pode convencer as pessoas que já não estejam desde o início convencidas ou propensas a isso.
· Os argumentos racionais são úteis para iniciar conversações. Mas se eles insistem em permanecer lineares (ou seja, excludentes, apegados ao "ou/ou"), isso significa que querem manter-se como os únicos "verdadeiros", isto é, que não respeitam a diversidade. E esta, como sabemos, é a base da cidadania.
13. Dessa maneira,
· Não se pode desenvolver uma compreensão satisfatória da cidadania e de desenvolvimento sustentado com base apenas no pensamento linear.
· Por outro lado, o pensamento sistêmico, quando isolado, é também insuficiente para as mesmas finalidades.
· Há, portanto, necessidade de uma complementaridade entre ambos os modelos mentais. O pensamento linear não se sustenta sem o sistêmico, e vice-versa. O desenvolvimento sustentado precisa de um modelo de pensamento que lhe dê base e estrutura. Este é o pensamento complexo.
· Como os processos de pensamento hegemônicos em nossa cultura estão unidimensionalizados pelo modelo linear, só um esforço educacional que comece na infância terá possibilidades de reverter de modo significativo esse quadro. Isso implica pelo menos o prazo de uma geração.
· No caso dos adolescentes e adultos de hoje, é possível alcançar mudanças substanciais nessa área, desde que eles sejam educacional e culturalmente sensibilizados.
· Para isso, é fundamental a atuação das entidades do terceiro setor (entidades comunitárias), porque por meio delas é possível questionar a rigidez institucional e o modelo mental linear que, em geral, caracteriza as estruturas governamentais.
Pensamentos linear, sistêmico e complexo
1. Em primeiro lugar, lembremos o exemplo de Joseph O’Connor e Ian McDermott. A Terra é plana? É claro que sim: basta olhar o chão que pisamos. No entanto, como mostram as fotografias dos satélites e as viagens intercontinentais, ela é obviamente redonda. Concluímos então que do ponto de vista do pensamento linear, de causalidade simples e imediata, a Terra é plana. Uma abordagem mais ampla, porém, mostra que ela é redonda e faz parte de um sistema.
2. Precisamos dessas duas noções para as práticas do cotidiano. Mas elas não são suficientes, o que nos leva a ampliar o exemplo desses autores e dizer que:
a) do ponto de vista do pensamento linear a Terra é plana; b) pela perspectiva do pensamento sistêmico ela é redonda; c) por fim, do ângulo do pensamento complexo — que engloba os dois anteriores — ela é ao mesmo tempo plana e redonda.
3. Recapitulemos:
· O pensamento linear, ou linear-cartesiano, é a tradução atual da lógica de Aristóteles. Trata-se de uma abordagem, necessária (e indispensável) para as práticas da vida mecânica, mas que não é suficiente nos casos que envolvem sentimentos e emoções. Ou seja, não é capaz de entender e lidar com a totalidade da vida humana.
· O pensamento sistêmico é um instrumento valioso para a compreensão da complexidade do mundo natural. Porém, quando aplicado de modo mecânico, como simples ferramenta (como se vem fazendo nos dias atuais, principalmente nos EUA, no mundo das empresas), proporciona resultados meramente operacionais, que não são suficientes para compreender e abranger a totalidade do cotidiano das pessoas.
· Por outras palavras, o pensamento sistêmico pode proporcionar bons resultados no sentido mecânico-produtivista do termo, mas certamente não é o bastante para lidar com a complexidade dos sistemas naturais, em especial os humanos.
· É indispensável ter sempre em mente que, em que pese a sua grande importância, ele é apenas um dos operadores cognitivos do pensamento complexo. Por isso, quando utilizado, como tem sido, separado da idéia de complexidade, diminuem a sua eficácia e potencialidades.
· O pensamento complexo resulta da complementaridade (do abraço, como diz Edgar Morin) das visões de mundo linear e sistêmica. Essa abrangência possibilita a elaboração de saberes e práticas que permitem buscar novas formas de entender a complexidade dos sistemas naturais e lidar com ela, o que evidentemente inclui o ser humano e suas culturas. As conseqüências práticas dessa visão bem mais ampla são óbvias.
Alguns princípios do pensamento complexo
· Tudo está ligado a tudo.
· O mundo natural é constituído de opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares.
· Toda ação implica um feedback.
· Todo feedback resulta em novas ações.
· Vivemos em círculos sistêmicos e dinâmicos de feedback, e não em linhas estáticas de causa-efeito imediato.
· Por isso, temos responsabilidade em tudo o que influenciamos.
· O feedback pode surgir bem longe da ação inicial, em termos de tempo e espaço.
· Todo sistema reage segundo a sua estrutura.
· A estrutura de um sistema muda continuamente, mas não a sua organização.
· Os resultados nem sempre são proporcionais aos esforços iniciais.
· Os sistemas funcionam melhor por meio de suas ligações mais frágeis.
· Uma parte só pode ser definida como tal em relação a um todo.
· Nunca se pode fazer uma coisa isolada.
· Não há fenômenos de causa única no mundo natural.
· As propriedades emergentes de um sistema não são redutíveis aos seus componentes.
· É impossível pensar num sistema sem pensar em seu contexto (seu ambiente).
· Os sistemas não podem ser reduzidos ao meio ambiente e vice-versa.
Alguns benefícios do pensamento complexo
· Facilita a percepção de que a maioria das situações segue determinados padrões.
· Facilita a percepção de que é possível diagnosticar esses padrões (ou arquétipos sistêmicos, ou modelos estruturais) e assim intervir para modificá-los (no plano individual, no trabalho e em outras circunstâncias).
· Facilita o desenvolvimento de melhores estratégias de pensamento.
· Permite não apenas entender melhor e mais rapidamente as situações, mas também ter a possibilidade de mudar a forma de pensar que levou a elas.
· Permite aperfeiçoar a comunicações e as relações interpessoais.
· Permite perceber e entender as situações com mais clareza, extensão e profundidade.
· Por isso, aumenta a capacidade de tomar decisões de grande amplitude e longo prazo.
O que se aprende por meio do pensamento complexo
· Que pequenas ações podem levar a grandes resultados (efeito borboleta).
· Que nem sempre aprendemos pela experiência.
· Que só podemos nos autoconhecer com a ajuda dos outros.
· Que soluções imediatistas podem provocar problemas ainda maiores do que aqueles que estamos tentando resolver.
· Que não existem fenômenos de causa única.
· Que toda ação produz efeitos colaterais.
· Que soluções óbvias em geral causam mais mal do que bem.
· Que é possível (e necessário) pensar em termos de conexões, e não de eventos isolados.
· Que os princípios do pensamento sistêmico podem ser aplicados a qualquer sistema.
· Que os melhores resultados vêm da conversação e do respeito à diversidade de opiniões, não do dogmatismo e da unidimensionalidade.
· Que o imediatismo e a inflexibilidade são os primeiros passos para o subdesenvolvimento, seja ele pessoal, grupal ou cultural.
[Este texto faz parte do livro de Humberto Mariotti As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade (São Paulo, Editora Palas Athena, 2000).]