MITO, RELIGIÃO E MAGIA PRIMITIVAS
A
atividade humana sempre esteve relacionada com uma certa visão do mundo, visão
esta que, aparentemente, nunca se limitou ao mundo sensível. O ser humano
conserva de maneira permanente a noção ou a obsessão de um prolongamento do seu
universo, de um mundo a que chama de sobrenatural.
Daí originou-se a Mitologia da
antigüidade, todos os mitos que se encontram entre os povos chamados primitivos
e cuja explicação poderá ser encontrada através de uma infinidade de publicações.
Esses mitos, muitas vezes se nos afiguram estranhos, desconcertantes, ou mesmo
de uma ingenuidade infantil. Entretanto, a nossa preocupação é alcançar,
através de suas excentricidades, o conteúdo humano que encerram.
Foi por intermédio dos mitos que,
ao longo dos séculos, milhões de almas se reanimaram e exaltaram. Eles fazem
parte da espiritualidade humana e são a fonte de inspiração de obras poéticas e
artísticas. O mito é considerado a “explicação pelo sobrenatural”.
Os primitivos, longe de serem
espíritos meramente positivos e práticos, possuíam uma faculdade de percepção
distinta do comum e seu pensamento impermeável à experiência nos moldes em que
a aceitamos. O mito, antes de tudo, é uma forma de vida. O primitivo acredita
captar as realidades do além numa experiência imediata, onde sentimentos e
emoções desempenham papel predominante. A mentalidade primitiva ou pensamento
mítico representa um grau na evolução própria do homem das sociedades antigas,
presente em todo espírito humano e que a mentalidade positiva nunca chega a
eliminar.
O mito é diferente da religião e
nem toda religião é mitológica, como querem alguns. Contudo, a religião é,
essencialmente, um conjunto de crenças e de práticas que advoga a noção de um
mundo sobrenatural, simultaneamente, um esforço no sentido de entrar em contato
com ele. O religioso é o “sagrado”, o que é separado do profano, por obrigações
ritualisticamente próprias.
Mitos são criações tradicionais e
lendárias que procuram, para o povo antigo, explicar certos fatos apelando para
o sobrenatural, racionalmente não compreendido. Mitologia designa, não só o
conjunto de mitos imaginados por um povo, como também o estudo deles. Entre
todas as mitologias, por uma repercussão na arte, na literatura, na
arquitetura, escultura, a que nos chega com mais importância é a mitologia
grega. O conhecimento dessa mitologia faz parte de toda a cultura ocidental.
Menos conhecida, porém com o mesmo valor para a raça humana está a mitologia
oriental, em que se sobressaem a Índia e a China.
O homem, em si mesmo, tem sempre,
desde épocas as mais distantes, o mundo como um conjunto de mistérios, e ele
tem procurado incansavelmente compreender e nesse sentido, dado a esses
aspectos inúmeras interpretações.
Entre esses mistérios aparentemente
insolúveis estão o raio, o trovão, o movimento das nuvens, a queda da chuva e
das neves, o ruído do vento, o amanhecer e o anoitecer, as fases da lua, a
marcha dos astros, o vôo dos pássaros, o nado dos peixes, o florescer das
plantas, a vida e contato sexual dos animais, enfim, tudo que pode ser
percebido pelos sentidos.
O progresso habitou com o tempo
nosso planeta, apesar disso, o homem continua vítima de numerosas fantasias e
superstições, encobertas de resplandecentes roupagens religiosas, filosóficas e
psicológicas. Desse modo, continua ele a desesperar-se diante de enigmas como
os da origem do universo, de como foi ele criado, de onde procede a vida, como
surgiu a raça humana e todas as conseqüências do labor insolúvel da mente
humana.
Quando o ser humano ainda era só,
nas cavernas espalhadas pelo globo, era tão só, que quaisquer que fossem as
manifestações dos elementos da natureza, tal fato o intimidava. Tudo indicava a
ele um poder maior, com maiores realizações, sem qualquer possibilidade de
domínio por parte dele. Daí começar esse homem a reverenciar esses aspectos e
dar a eles a sensação de divindade. Nasceu aí a primeira tentativa de
compreender a natureza. Relacionava sempre suas atividades às manifestações
naturais, como por exemplo, que ele tomasse iniciativa de qualquer prática para
uma satisfação pessoal e logo após um desses aspectos da natureza fosse
percebido – e sempre o era – tomava como indício de alguma mensagem divina.
Dentre as manifestações da natureza, a que mais lhe chamava a atenção era o
fogo produzido por um trovão, raio ou a incandescência dos vulcões. Era um
poder terrível nas mãos de um deus vingador. Exercia grandes pressões sobre a
mente humana. Endeusando essas manifestações, criou ele símbolos de significado
geral para épocas em que ele já vivia em sociedade, ou pelo menos em contato
uns com os outros de modo mais permanente, porque todos tinham mais ou menos as
mesmas idéias a respeito do fato, constituindo assim uma crença única que
provocava as mesmas reações.
Perdendo-se na noite dos tempos,
essas reações e concepções formam na trilha da evolução o sentimento religioso
e a necessidade de simbolizar a sua identidade a esse sentimento. A crença, sem
sombra de dúvida, engloba o problema central da análise do espírito.
Analisando o problema de frente,
podemos perceber que o conteúdo da vida intelectual consiste em crenças através
do próprio raciocínio. Certas crenças podem nos trazer tanto o conhecimento
positivo como o negativo. São, portanto, veículos de verdade e de falsidade.
Naturalmente,
sabemos que as palavras e os símbolos são caracterizados pelo significado que
apresentam; as crenças caracterizam-se pela maior ou menor afinidade que o
indivíduo com enlevo se lançará a elas.
A religião é um aspecto universal
de comportamento e, como não poderia deixar de ser, de cultura, uma vez que
desde os primórdios, o homem se tornou fundamentalmente um ser religioso. Todas
as culturas que são do conhecimento quer da história, arqueologia e mesmo de
todo o arcabouço da antropologia, inclui a existência de um conjunto bem
organizado de crenças, que representam, para o povo em questão, respostas
efetivas às inquirições da vida e também provêem a organização e a ação
apropriada das crenças.
A ciência preocupa-se tão-somente
em descrever e procurar proposições generalizadas sobre a religião e as
crenças, sem, contudo avaliar um sistema religioso particular, mas em sentido
universal. As técnicas para isso aplicadas não conseguirão facilmente
compreender plenamente, por exemplo, os êxtases de um santo ou as agonias de um
pecador, quando na verdade nem em suas existências acreditam.
O termo “religião” significa, em
análise mais profunda, a ligação do “Si Mesmo Absoluto” “ao Si Mesmo Relativo”,
promovido incessantemente pelo indivíduo, uma vez tratar-se de uma aspiração
inerente ao próprio ser. Considerada do ponto de vista puramente sociológico,
interpreta-se num sentimento de vinculação, de obrigatoriedade a certos
procedimentos e padrões específicos, diferindo a atividade religiosa de atitude
supersticiosa e de todas as formas de magia. Do ponto de vista antropológico, a
religião é parte essencial da cultura de qualquer povo. Os registros
arqueológicos a respeito da religião dependem, na maioria dos casos, dos
artefatos em que é objetivada a crença. Daí verifica-se que já o homem de
Neandertal enterrava seus mortos, ligando tal fato a um sistema de crenças.
Os antropólogos e diversos outros
estudiosos acreditam que a religião e as teorias existentes e distintas sobre a
matéria, foram originadas de um conjunto de crenças primitivas, como fatores
fundamentais para que o homem pudesse compreender os sonhos, as alucinações, o
sono e os fenômenos da natureza, dos quais não tinha participação ativamente
consciente. Acreditava ele numa personalidade interior, procurando entender a
concepção animista de seres espirituais, incluindo animais, plantas e os
objetos inanimados.
Vemos, portanto, que tais teorias
se escudam na forma de raciocínio intelectivo usado em tais procedimentos, implicando
ainda a esse respeito o animismo (pré-animismo), no sentido de admiração diante
do desconhecido, criando dessa forma a idéia de uma força espiritual, em que
tudo era animado por uma força realmente vital.
O culto dos “fantasmas”,
originou-se do culto dos ancestrais heróicos comparados aos deuses, combinando
através desse mesmo culto o medo de fantasma ou sombra.
A magia era produto do julgamento
da existência de forças caprichosas desconhecidas, com poderes superiores aos
seus e das quais se aproximava também pelo culto.
O Fetichismo – disseminado no
folclorismo – onde o homem atribuía qualidades espirituais ao Sol, à Lua, às
estrelas e outros objetos da Natureza, num gesto do que podemos chamar de
paganismo psíquico, compõe uma tríade que possibilita iniciar-se um processo de
pesquisa.
Dentre as teorias defendidas por
estudiosos, figuram a do instinto religioso: do Deus altíssimo, da Projeção da
Experiência infantil, do Rei-Deus Morto, Vício de Linguagem, etc. Alguns
historiadores assinalam que não existem provas da existência de algumas das
teorias acima relatadas. Outros escrevem que o homem primitivo tinha respeito e
admiração pelo desconhecido. Outros, entretanto, falam enfaticamente em provas
tais como de que o homem de Cro-Magnon tinha idéias muito evoluídas sobre um
mundo de forças invisíveis. Preocupava-se mais com cuidados aos corpos dos
defuntos que o homem de Neandertal, pintando os cadáveres, cruzando-lhes os
braços sobre o peito e depositando nas sepulturas pingentes, colares, armas e instrumentos
ricamente lavrados. Possuía um complicado sistema de magia-simpática, com a
finalidade de aumentar a sua provisão de alimentos. Tal prática tem fundamento
no princípio de que, ao imitarmos um resultado desejado, produziremos
automaticamente esse resultado.
Colocando esse princípio em
prática, fez pinturas nas paredes das suas cavernas, representando a captura de
renas na caça, ou esculpiu imagens de animais com o flanco trespassado por
azagaias, modelou bizões ou mamutes em argila e depois mutilou-os com golpes de
dardo. Essas representações visavam unicamente facilitar a efetivação do seu
desejo, o que vinha concorrer para o sucesso do caçador, tornando assim mais
fácil sua luta pela existência. Não se sabe ao certo ainda se encantamentos e cerimônias
acompanharam as execuções dessas pinturas e imagens, julgando-se ainda provável
que esse trabalho fosse realizado enquanto a verdadeira caçada estivesse em
andamento.
Já no período neolítico, a
religião e a crença assumiram uma forma mais complexa, determinada pela própria
evolução e expansão dos conhecimentos herdados de épocas anteriores. Torna-se
de toda forma, a expressão de um sentimento de dependência em face de um poder
exterior a nós mesmos, poder cuja natureza pode se qualificar de espiritual ou
moral.
Os antropólogos modernos colocam
em destaque o fato de que a religião primitiva não era bem uma questão de
crença como de ritos. Os ritos, na maioria das vezes primeiro, depois, os
dogmas e teologias foram o fruto de raciocínio posterior.
O homem primitivo dependia sempre
da natureza das sucessivas e regulares estações das chuvas nas ocasiões
normais, da frutificação regular e da sistemática reprodução dos animais. Para
ele esses fatos não ocorriam a menos que ele lançasse mão de certos ritos e
sacrifícios. Daí a instituição de certas cerimônias com finalidade de concorrer
na participação ativa dos diversos trabalhos feitos pela natureza. As danças
rituais dos índios americanos muitas vezes apresentam uma significação análoga.
Para essas cerimônias utilizavam-se da vestimenta de peles de animais e
imitavam os hábitos e atividades de uma espécie definida e da qual dependiam
para a obtenção do que necessitavam.
Não podemos nos esquecer,
entretanto, do elemento medo, cuja presença se manifestava na religião
primitiva. O homem selvagem temia e teme a doença e a morte, a fome, a seca, as
tempestades, os espíritos dos mortos e os animais que ele próprio matou. Todas
as calamidades e desgraças são prenúncios de mais alguma coisa ruim que está
por vir, a menos que tal influência possa ser interrompida. Para tanto, os
encantamentos, sortilégios e outros recursos de poder mágico tornam-se de
grande necessidade. Presume-se, daí, que grande parte da religião primitiva
consiste em profilaxia ritualística para afastar o mal. Exemplificando: poucos
selvagens, mesmo hoje, se arriscariam a atravessar a nado um rio perigoso sem
primeiro procurar ganhar o seu beneplácito por meio de orações e encantamentos.
O esquimó que mata um urso polar deve presenteá-lo com armas e utensílios que
lhe sejam agradáveis; se o urso é fêmea, a dádiva consiste em facas de uso
feminino e em estojos de agulhas. Isto é necessário porque virá apaziguar a
cólera da alma do animal morto e evitar que ela opere malefícios.
Entre a religião e crenças que
acabamos de descrever e as religiões teológicas de hoje (judaísmo, cristianismo
e as conseqüentes) existem ainda algumas conexões remanescentes.
Não só os homens daquele período,
como a maioria dos de hoje ainda acham-se num estágio pré-lógico, não sabendo
como definir determinadas proposições intelectivas, sem condições de distinção
entre o “natural” e o “sobrenatural”, não reconhecendo de modo nenhum os
chamados milagres, porque considerando-se grandes em tudo, para eles nada é
impossível ou absurdo.
Depois dessa fase, vemos que esses conceitos
se transformaram numa religião teológica, em que o pensamento e a crença são
devotados a deuses benévolos e já há uma tentativa de explicação filosófica do
universo. Ao que tudo indica, algumas tribos idearam que seres sobrenaturais,
sob forma humana, estariam em condições de ouvir e atender às súplicas dos
viventes em maior grau do que os espíritos desencarnados ou fantasmas. Com o
burilamento desse raciocínio, veio a natural evolução dos conceitos, até
atingir um estado em que a moral, a retidão e a justiça fazem parte de uma
divindade bondosa e única.
Nem por isso o primitivo ficou
isolado no passado. Em nosso país, os ritos afro-brasileiros denotam sua
constante presença e influência. Mesmo algumas religiões, hoje, deixam entrever
de alguma forma, perseverante preocupação de seus adeptos em formalizar uma
série de ritos com as mais variadas finalidades, inclusive aquelas do mais alto
interesse dos povos primitivos: bons negócios, afastamento de males, felicidade
matrimonial, remissão de culpas, etc.
A magia da umbanda, quimbanda,
candomblé, mais generalizada em nosso meio, traz de longa data a sedimentação
conjuntural dos princípios que formam o início dos padrões de pensamento e
comportamento que os séculos não conseguiram apagar.
Enquanto
o homem não se aperceber de que todas as verdadeiras realidades do universo
fazem parte de seu todo existencial e que entre ele e o todo existe uma linha
fronteiriça que pode ser tocada, não estará de nenhuma forma caminhando para
uma espiritualidade pura, isenta de influências, que de maneira alguma deveriam
perturbar a sua divindade que lhe pertence por direito.
04.08.2019